Os músicos como atletas
Afirmo-o com a convicção de quem conhece bem estes dois universos: os músicos são atletas de alto rendimento, mas não se tratam como tal. A performance musical profissional e a performance desportiva de alto rendimento obrigam a níveis de compromisso e exigência física e mental muito semelhantes. O tempo, empenho e consistência necessários para alcançar uma performance de alto nível a tocar um instrumento ou no desempenho de um desporto específico têm muito mais em comum do que se poderia, à partida, pensar. Algumas diferenças residirão no facto de, duma forma geral, o recrutamento neuromuscular associado a tocar um instrumento ter um enfoque maior ao nível da motricidade fina (i.e. movimentos curtos de maior precisão e executados iminentemente com as extremidades) e menor ao nível da motricidade grossa (i.e. movimentos de maior amplitude envolvendo os grupos musculares de maior dimensão) que normalmente identificamos associados aos gestos desportivos. Contudo, convém esclarecer que tanto os grandes grupos musculares, como os músculos de menor dimensão associados à motricidade fina, têm uma função importante a nível postural, na execução instrumental e nos mais variados gestos desportivos.
Por exemplo, se estabelecermos um paralelismo entre tocar violino e a execução de um gesto desportivo como o serviço no ténis, verificamos que, embora a diferentes níveis de exigência, um equilíbrio do controlo motor fino e grosso é necessário para uma melhor performance em ambas as actividades. Quando tocamos violino, queremos manter uma postura alta e controlada por forma que o segurar do violino com o braço não dominante e o manejar do arco com o braço dominante, permita que o trabalho fino das mãos e dedos ocorra da forma mais eficiente possível. Ora, se a musculatura envolvida na estabilização do tronco e na elevação dos braços for fraca, a fadiga instala-se mais rapidamente resultando numa deterioração postural, numa execução em maior esforço e consequente numa pior performance. No caso do serviço do ténis, à elevada exigência de coordenação motora e força envolvendo todos os grandes grupos musculares do membro inferior e superior, junta-se a necessidade de coordenação fina ao nível dos movimentos do pulso, mão e dedos, por forma a imprimir na bola o efeito e a direcção que se pretende.
De facto, tanto a performance musical como a desportiva envolvem recrutamento neuromuscular para produzir movimento e trabalho que requer precisão, velocidade, endurance e força. Além disso, e sobretudo a um nível profissional, tocar um instrumento e praticar um desporto são actividades que obrigam a longas horas de prática de gestos repetitivos que, aliado a um mau condicionamento físico, poderá conduzir a uma variedade de problemas médicos. É impensável que um atleta de alta competição não siga um programa de treino das qualidades físicas complementar à prática do seu desporto. É fácil de entender que é uma boa condição física de base que irá garantir maior resiliência e longevidade na prática desportiva. O mesmo se aplica à performance musical. Os músicos são atletas de alta competição e deverão preparar-se como tal! Viver e tocar com dor não é uma inevitabilidade, é uma opção.
A prevalência de dor e lesões nos músicos
À medida que os anos passam e as horas agarrados ao instrumento se acumulam, é quase inevitável que os músicos profissionais desenvolvam em determinado momento da sua carreira problemas musculoesqueléticos e/ou neuromusculares de gravidade variável. Isto se não fizerem nada no que concerne à sua preparação física. Estudos de revisão sobre a prevalência de lesões em músicos profissionais apontam para que 76% dos músicos sofrem ou sofreram de problemas físicos que os impedem de actuar ao seu nível habitual e 84% tiveram lesões que interferiram negativamente com a sua prática musical1. Alguns músicos ficar-se-ão por tendinopatias e lombalgias de intensidade variável que conseguirão gerir à custa da toma crónica de medicamentos anti-inflamatórios ou simplesmente tocando menos frequentemente e suportando dor e desconforto. Outros, desenvolverão síndromas lesionais por sobreuso mais graves que se tornarão crónicos e comprometerão não só a qualidade da performance, mas também a qualidade de vida, obrigando a períodos de inactividade musical. Outros ainda, sofrerão de formas de lesão ainda mais graves que poderão resultar no abandono da carreira como músico instrumentista.
De uma forma geral, lesões mais frequentes em instrumentistas afectam e manifestam-se através de dor e/ou disfunção sobretudo das articulações, tendões, ligamentos e nervos do membro superior, cabeça, pescoço e coluna. Por exemplo, em instrumentistas de orquestra as lesões de origem músculo-esquelética e/ou neuromuscular são mais comuns afectando cerca de 64% dos músicos, dos quais 20% são problemas do foro nervoso periférico e cerca de 8% são casos de distonia focal2 . O que faz sentido, tendo em conta que essas são as zonas do corpo mais stressadas durante a prática instrumental. Excepção feita à distonia focal, que apesar de poder estar acompanhada de dor e lesão músculo-esquelética, a origem da disfunção observada a nível periférico é, na verdade, central, ou seja, os circuitos neuronais disfuncionais estão comprometidos logo nos níveis superiores do sistema nevoso central como o córtex cerebral. Assim, as lesões mais frequentes em músicos instrumentistas podem ser resumidas da seguinte forma3:
- Lesões músculo-esqueléticas – epicondilite, tendinopatias (tendinose, tendinite, tenossinovite), bursite, artrite, artrose, osteoartrite, contracturas, lesões na articulação temporomandibular;
- Bloqueio e inflamação nervosa – síndroma do túnel cárpico, síndroma do desfiladeiro torácico, síndroma do túnel radial, síndroma de compressão do nervo ulnar, síndroma do túnel ulnar, radiculopatias cervicais e lombares;
- Hipermobilidade;
- Distonia focal;
- Perda de audição.
O surgimento de lesões nos músicos deve-se a um conjunto de factores que, naturalmente, interagem. Vários autores identificaram os seguintes factores como facilitadores e/ou provocadores do surgimento de lesões nos músicos1:
- Factores fisiológicos e biológicos como género e idade. As mulheres instrumentistas parecem ter maior propensão para desenvolver lesões músculo-esqueléticas e nervosas periféricas em relação aos homens, e indivíduos que iniciem precocemente a prática instrumental com elevado volume, aos 4-5 anos de idade, também têm maior probabilidade de desenvolver lesões mais tarde na sua carreira4,5. No caso da distonia focal há uma prevalência clara no sexo masculino (acima de 90%) e em mulheres com distúrbios menstruais, o que sugere que factores hormonais podem ser predisponentes para o desenvolvimento desta patologia6.
- O tipo de instrumento. As características do instrumento (tamanho, forma e peso) e o tempo de prática implicam níveis diferentes de exigência física, em que a fadiga instalada e a execução em esforço podem levar ao desenvolvimento de lesões7. Por exemplo, a posição inerente a tocar clarinete implica que todo o peso do instrumento esteja suportado sobre o polegar direito, e ao mesmo tempo requer uma grande quantidade de movimentos curtos e rápidos dos dedos de ambas as mãos8. Outro exemplo que me diz especial respeito, é o contrabaixo de cordas. Um instrumento volumoso com uma coluna de ar de inércia considerável, que requer não só considerável força de preensão da mão que pisa as cordas, como um esforço físico (que na verdade se quer minimizar em favor de uma técnica de execução o mais eficiente possível) para fazer movimentar essa coluna de ar e fazer o instrumento vibrar e produzir som. Quem já experimentou tocar contrabaixo alguns minutos percebe bem a dimensão física que o instrumento poderá ter.
- Técnica instrumental. Uma técnica de instrumento débil, com posições não optimizadas, mais baseada em esforço físico do que numa técnica eficiente, associada a longas horas de prática sem descanso, vai naturalmente predispor o instrumentista à dor e à lesão sobretudo nos pulsos, mãos, pescoço e ombro9.
- A exigência performativa. A exigência técnica de uma determinada peça musical que muitas vezes requer uma execução a elevada velocidade, elevada intensidade, com fatigante repetição de movimentos ou manutenção de posições extremas das mãos durante um largo período de tempo. Tudo isto é gerador de stress mecânico e poderá ser causador de lesão 10,11.
- Assimetria corporal. Da mesma forma que um atleta de modalidades com enfoque unilateral irá tentar compensar essas assimetrias trabalhando os dois lados do corpo, um músico encontra-se numa situação semelhante, pois tocar um instrumento implica um trabalho assimétrico em posições muito pouco naturais por longos períodos de tempo, favorecendo a instalação de vários desequilíbrios musculares12.
- Má condição física. Bons níveis de força e uma boa condição geral é essencial para manter uma boa posição ao tocar um instrumento durante longos períodos de tempo. Posições essas, na sua maioria, muito pouco naturais. A melhoria da condição física irá permitir resistir ao instalar da fadiga, recuperar mais rapidamente entre ensaios ou sessões de estudo, e na verdade, irá permitir tolerar mais horas de prática sem deterioração da técnica musical e performance7. Desequilíbrios e fraqueza musculares resultante das longas horas sentado, da manutenção de certas posições e da repetição exaustiva de movimentos curtos devem ser tratados através de programas de treino que incluam exercícios que fortaleçam o corpo de forma global e que, ao mesmo tempo, visem compensar desequilíbrios musculares específicos induzidos pela prática instrumental13.
- Outros factores de estilo de vida. Sabemos que aspectos do estilo de vida como fumar ou exposição ao fumo, consumo de álcool, privação de sono, má nutrição, má hidratação e obesidade têm efeitos muito nefastos a nível sistémico no nosso corpo. No que concerne ao desenvolvimento de lesões do foro neuromuscular, sabemos que todas estas formas de toxicidade fragilizam todo o tecido conjuntivo (cartilagem, tendões, ligamentos, membranas), os músculos e a condução nervosa, predispondo à ocorrência de processos inflamatórios localizados e ao desenvolvimento de lesões crónicas. Sabia que, por exemplo, a obesidade predispõe grandemente para o desenvolvimento da síndrome do túnel cárpico?14 Ou que fumar está fortemente associado ao desenvolvimento de lesões e disfunções no ombro?15
Prevenir e resolver lesões nos músicos
Qualquer atleta de elite sabe empiricamente algo que há muito tempo é corroborado pela ciência. Que a forma mais eficaz de prevenir (e também curar) lesões de sobreuso ou sobrecarga devido à prática desportiva com elevado volume é garantir uma boa condição física de base aliada a bons hábitos de recuperação, descanso e nutrição. No que concerne à sua condição física, não passa pela cabeça de um atleta de elite, não seguir um programa regular de desenvolvimento das qualidades físicas. Ele sabe que isso terá consequências negativas quer no seu rendimento desportivo, quer na sua susceptibilidade para desenvolver lesões. Ele sente na pele que quanto mais fraco o seu sistema músculo-esquelético se encontrar, mais susceptível estará de se lesionar devido ao elevado volume a que a sua prática desportiva de alta performance obriga. A pergunta que se impõe é, e se considerarmos que a actividade em que os músicos profissionais incorrem constitui uma actividade de alta performance física e mental que obriga a largas horas de prática diária, não deverão os músicos tratar-se como atletas de alto rendimento? Eu tenho a certeza que sim.
De facto, numa revisão sistemática de 2019 sobre treino físico para músicos profissionais de orquestra1, os autores indicam que seguir um programa de treino físico estruturado de durações variadas (desde algumas semanas a vários meses), resultou, de uma forma geral, em melhorias significativas na performance e na redução (e mesmo eliminação) de dores crónicas.
Para manter-se a tocar ao mais alto nível e por muito tempo, os músicos beneficiariam muito se se tratassem como atletas de alto rendimento. Garantir que se mantêm em boa forma física conjugado com bons hábitos de recuperação, descanso e nutrição. E atenção, quando falo em manter-se em boa forma física não me refiro a praticar desporto. Aliás, praticar desporto como forma de melhorar a condição física não é ideal e até pode ser prejudicial. Pois estar-se-á a adicionar mais uma actividade com características assimétricas a outra também ela assimétrica que é tocar um instrumento musical. Em geral, todos os desportos são por definição constituídos por movimentos especializados, e por isso mesmo, assimétricos. Por isso, a não ser por razões meramente lúdicas (que também pode ser positivo a um nível mental), a prática de um desporto como estratégia para melhorar a condição física não é ideal e não deve ser a forma escolhida em especial pelos músicos (abordo esta questão neste artigo: Porque é que os músicos não devem fazer desporto?).
A condição física geral de base melhora-se através do treino das qualidades físicas. Isto pressupõe uma avaliação da situação inicial para aferir as limitações específicas e delinear uma estratégia de intervenção. Há que começar sempre pela base e progredir a partir daí, tal como o processo de aprender a tocar um instrumento musical. Aqui, a atenção ao detalhe é fundamental. Uma estratégia bem delineada implica uma gestão das variáveis do treino específica para a condição e objectivos do atleta ou, neste caso, do músico. É crucial uma correcta selecção de exercícios, e monitorização de perto da sua implementação quanto à forma de execução, carga utilizada e progressão ao longo do tempo. Como referi, não é muito diferente do processo de aprender a tocar um instrumento musical!
Para um músico, tocar o instrumento é a prioridade das prioridades. Pode ser obsessivo, eu sei. Mas tocar melhor e no longo prazo não passa necessariamente por tocar mais horas, mas por investir em cuidar da ‘’máquina’’ que é o nosso corpo. Volto a reforçar que tocar com dor ou desconforto é uma opção e não uma inevitabilidade. Cuidem do vosso corpo e tratem-no bem, pois irão precisar dele no longo prazo!
Bons ensaios e bons treinos!
Nuno Correia
Referências:
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- Sardá, E. (2003). En forma: ejercicios para músicos. Barcelona: Paidos.
- Thrasher, M., y Chesky, K. (1998). Medical problems of clarinetists: Results from the U.N.T. musician health survey. The Clarinet, 25(4), 24–27.
- Wynn, C. B. (2004). Managing the physical demands of musical performance. En Williamon A. (Ed.), Musical excellence: Strategies and techniques to enhance performance (pp. 41–60). Londres: Oxford University Press.
- Bejjani, F. J., Kaye, G. M., y Benham, M. (1996). Musculoskeletal and neuromuscular conditions of instrumental musicians. Archives of Physical Medicine and Rehabilitation, 77(4), 406–413.
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- Bishop, Julie Y. et al. (2015). Smoking Predisposes to Rotator Cuff Pathology and Shoulder Dysfunction: A Systematic Review. Arthroscopy, Volume 31, Issue 8, 1598 – 1605.
Recentemente, a International Society of Sports Nutrition publicou um “position stand” (ver referência abaixo) acerca da segurança e eficácia da suplementação com creatina no contexto do exercício, desporto e medicina.
A suplementação com creatina, um dos mais populares e estudados suplementos nutricionais, tem de facto mostrado ser eficaz em melhorar a performance atlética (sobretudo em exercício de alta intensidade) e induzir adaptações ao treino relevantes. O aumento consequente das reservas intra-musculares de creatina (e fosfocreatina) facilita a resíntese rápida de ATP (“moeda de troca” energética essencial para quase todas as reacções no nosso corpo) e dessa forma contribui para melhorar a performance porque aumenta a capacidade de produção de força, trabalho muscular, acelera a recuperação e parece contribuir para prevenir lesões.
Contudo, a suplementação com creatina parece ser altamente segura e eficaz em atletas, não-atletas (entusiastas do exercício físico) e ainda em várias populações clínicas. De facto, vários estudos (ver artigo da ISSN, referência abaixo) apontam para benefícios na suplementação com creatina nas mais variadas populações e contextos clínicos, tais como:
– Acelerar a reabilitação de lesões (porque atenua a atrofia muscular);
– Protecção de lesões neuronais (medulares e cerebrais);
– Atenuar as consequências debilitantes em pessoas com síndromas congénitos de deficiência de síntese de creatina;
– Atenuar a progressão de doenças neurodegenerativas (e.g. doença de Huntington, doença de Parkinson, doenças mitocondriais, esclerose lateral amiotrófica);
– Prevenir e/ou melhorar a bioenergética em pacientes com isquemia do miocárdio ou vítimas de acidente vascular cerebral;
– Melhorar indicadores metabólicos e funcionais associados ao envelhecinento;
– Possível benefício durante a gravidez para o óptimo crescimento, desenvolvimento e saúde do feto.
Em conclusão, a creatina parece de facto ser um suplemento nutricional seguro e com benefícios para as mais variadas populações e idades.
Nuno Correia
Referências:
Kreider, R.B. et al., 2017. International Society of Sports Nutrition position stand: safety and efficacy of creatine supplementation in exercise, sport, and medicine. Journal of the International Society of Sports Nutrition, 14(1), p.18.
A prevalência auto-relatada de dor no ombro está estimada entre 16-26% e esta é a terceira causa mais comum de desordem músculo-esquelética em consulta (ver referência abaixo). Factores físicos como os seus hábitos de exercício e a realização de movimentos repetitivos (de baixa e alta intensidade) em posições inadequadas pode resultar em lesão ou em dores crónicas.
Por este motivo, na The Strength Clinic, consideramos que existem quatro pilares fundamentais no funcionamento do ombro:
1) Respiração – Respirar adequadamente é muito importante para maximizar a performance. Uma pessoa normal respira em média mais de oito milhões de vezes por ano e o mais provável é que ela não o faça da forma mais eficiente. A maior parte das pessoas utiliza apenas uma pequena percentagem da capacidade do corpo para extrair oxigénio do ar para os pulmões porque tem tendência em respirar somente com a parte superior do corpo (respiração apical), em vez de realizarem uma respiração mais profunda a partir do músculo respiratório mais eficiente que nós temos, o diafragma.
2) Postura – Apesar de sobrevalorizada na maior parte das vezes, a postura de cada indivíduo pode ter influência no aparecimento de lesões e na prevalência de dor crónica. Principalmente quando falamos de actividades com alto impacto / cargas elevadas (nas quais a biomecânica assume uma importância fundamental) e dos hábitos diários de movimento que cada pessoa tem. Uma postura deficiente é normalmente o resultado de vários desequilíbrios estruturais, musculares e articulares, no entanto, é preciso referir que o nosso corpo tem uma capacidade de adaptação enorme e que a falta de movimento de qualidade é, provavelmente, o problema principal. Ao contrário do que possa pensar não há posturas perfeitas!
3) Grip – Há um fenómeno chamado irradiação, portanto quanto maior a força de preensão, maior a activação dos nervos e músculos ao longo da cadeia cinética. Como consequência haverá um aumento da eficiência neurológica e teremos os músculos da coifa dos rotadores (supraespinhoso, infraespinhoso, pequeno redondo, subescapular) a disparar da forma que devem e não da forma convencional. As mãos estão intimamente ligadas com o funcionamento do sistema fisiológico e neurológico mas, infelizmente, este é um fenómeno muito ignorado nos programas de treino de hoje em dia.
4) Posição das articulações – O treino de coifa dos rotadores apenas não vai assegurar a saúde funcional do seu ombro. A estabilidade das omoplatas, que depende da mobilidade da coluna torácica, é fundamental para assegurar que a cavidade glenóide está bem posicionada para as forças aplicadas. A estabilidade das ancas e do tronco é também necessária para servir de fundação para a posição e funcionamento das omoplatas. Ou seja, se o controle do eixo central for fraco é muito provável que as suas omoplatas sejam arrastadas para posições desfavoráveis e isso vai prejudicar a transmissão de força.
Portanto, qualquer estratégia que tenha como finalidade melhorar a funcionalidade do ombro deverá considerar estes quatro pilares porque um ombro aparentemente forte não é necessariamente um ombro estável e é a estabilidade que deve preceder a produção de força.
Pedro Correia
Referências:
Mitchell C, Adebajo A, Hay E, Carr A. Shoulder pain: diagnosis and management in primary care. BMJ: British Medical Journal. 2005;331(7525):1124-1128.
Existem várias linhas de evidência a sugerir que a disfunção mitocondrial está associada à sarcopenia (perda de força e massa muscular no envelhecimento). Em cada célula do nosso corpo existem centenas ou milhares de mitocôndrias, elas existem em maior quantidade nos órgãos e tecidos mais ativos (músculos, coração e cérebro). A razão pela qual envelhecemos rapidamente deriva das constantes lesões e insultos que causamos às nossas mitocôndrias. O stress crónico, a falta de sono, as más escolhas alimentares, a falta de exercício físico (em particular treino de força), o álcool, o tabaco, a exposição a poluentes são apenas alguns exemplos de como é que o seu estilo de vida pode influenciar o funcionamento destas pequenas estruturas.
As mitocôndrias são os organelos responsáveis pela produção de energia no nosso corpo, se você está sempre cansado(a), se tem perdas de memória, se costuma ter dores musculares e se é daquelas pessoas que toma medicamentos para o colesterol, hipertensão, diabetes e outras doenças crónicas é muito provável que as suas mitocôndrias não estejam em forma. Mas vamos ao estudo.
Este estudo pode ser considerado um estudo revolucionário pelo seu impacto que tem sobre os benefícios do treino de força em pessoas idosas. Este estudo foi publicado em 2007 e foi o primeiro estudo realizado em humanos (tanto quanto sei) a demonstrar que o treino de força tem a capacidade de reverter o processo de envelhecimento a nível molecular. Se fosse um medicamento ou um suplemento alimentar a demonstrar estes efeitos, eu penso que já toda a gente sabia.
Amostra
Para a realização do estudo os investigadores recrutaram 25 pessoas idosas saudáveis (idade média de 68 anos), que já faziam algum tipo de exercício físico (caminhadas, jardinagem, ténis, golfe, ciclismo) três a quatro vezes por semana e 26 adultos jovens (idade média de 24 anos) relativamente inativos, alguns deles participantes em atividades recreativas.
Os autores seleccionaram idosos relativamente ativos e adultos jovens relativamente sedentários (em relação a outros da mesma idade), de tal forma a estudar o efeito do envelhecimento em idosos saudáveis per si e não apenas o efeito da inatividade física. Todos os indivíduos mais velhos passaram por um processo de triagem minucioso antes de serem admitidos no estudo para garantir a ausência de doenças que poderiam alterar a função mitocondrial.
Todos os sujeitos completaram uma avaliação médica antes de participarem no estudo. Os critérios de exclusão foram: evidência de doença cardíaca (pela história e teste de esforço); hipertensão; doença pulmonar obstrutiva crónica; diabetes mellitus; insuficiência renal; lesão ortopédica e tabagismo. Nenhum dos sujeitos tinha participado anteriormente num programa estruturado de treino de resistência muscular.
Programa de Treino
Os indivíduos realizaram exercícios de resistência com supervisão em dois dias não consecutivos da semana (segunda-feira/quinta-feira ou terça-feira/sexta-feira) durante 26 semanas (seis meses). Os indivíduos realizaram doze exercícios diferentes incluindo chest press, leg press, leg extension, leg flexion, shoulder press, lat pull-down, seated row, calf raises, crunches, back extensions, bicep curl e extensão de tricípite.
Os sujeitos começaram inicialmente com uma série de 50% de 1 repetição máxima (1RM), e aumentaram gradualmente para três séries a 80% do seu 1RM durante o período de intervenção. Os sujeitos testaram o seu 1RM para todos os exercícios a cada duas semanas, e as cargas de treino foram sendo ajustadas de forma a manter 80% do seu 1RM.
Biópsia Muscular
Todos os indivíduos mais jovens (N=26) foram submetidos a uma biópsia muscular (incisão e extração de uma parte pequena de músculo) retirada do vasto lateral (músculo da coxa) antes e depois do estudo de 26 semanas. Os indivíduos idosos (=25) fizeram biópsias antes do estudo e depois (N=14) do estudo. O RNA (ácido ribonucleico) foi extraído a partir do músculo para análise para determinar os genes que se expressavam de forma diferenciada com a idade.
Resultados
Os autores do estudo identificaram 596 genes expressos de forma diferenciada entre os indivíduos jovens e idosos. Destes 596 genes, os investigadores identificaram 179 associados com a idade e exercício que mostraram uma reversão em seis meses de treino de resistência muscular. Isto significa, literalmente, que o treino de resistência muscular não serviu apenas para retardar, mas também para reverter o processo de envelhecimento ao nível genético. As expressões genéticas dos indivíduos idosos mostraram características semelhantes às do grupo mais jovem. Os investigadores também observaram que a disfunção mitocondrial (que afloramos no início do post e que está muito relacionada com a inatividade física) começou a reverter após seis meses de treino.
No que diz respeito à força muscular, aconteceu aquilo que se esperava, ou seja, quem fez força ficou mais forte. A força isométrica das pessoas idosas era inicialmente de 59% menor do que os adultos jovens mas depois de seis meses de treino, as pessoas idosas melhoraram e ficaram 38% mais fracas que os adultos jovens.
Abaixo poderá ver destacado a vermelho as conclusões dos autores do estudo:
Conclusões
Hoje em dia todas as pessoas sabem que o exercício físico está associado a uma diminuição da morbilidade e da mortalidade em humanos, isto não é segredo para ninguém. O que as pessoas provavelmente não sabem é que existem formas de exercício físico que podem ser mais benéficas que outras para aumentar a força e a longevidade. Este estudo demonstrou, pela primeira vez, que o treino de resistência muscular pode reverter os aspectos relacionados com o envelhecimento ao nível do gene. Sim, você está a ler bem, reverter o envelhecimento a nível molecular!
O facto das pessoas mais velhas terem ficado mais fortes para mim não foi surpresa nenhuma, e não será também para os profissionais que têm o privilégio de trabalhar nesta área. Não é raro termos pessoas mais velhas a começarem a sua prática com pesos mínimos e, em pouco tempo, evoluírem para cargas iguais ou superiores àquelas de jovens de 20 e poucos anos. É tudo uma questão de dedicação e de método.
Durante anos e anos os treinadores pessoais e os profissionais de fitness têm-se fartado de referir aos seus clientes / atletas a importância do exercício físico na melhoria da saúde. Esta mensagem, na minha opinião, não tem sido bem compreendida pelas pessoas em geral, na medida em que as mesmas ainda não compreenderam que o movimento e o exercício físico é tão importante para nutrir o corpo como os alimentos que comem todos os dias.
Em suma, este estudo fascinante está basicamente a dizer-nos que todos nós temos hipótese de aumentar a longevidade (mesmo quando somos mais velhos) e que o elixir da juventude até é algo conhecido e até é algo que está relativamente acessível a toda a gente – o treino de força. O único problema é este: para estes benefícios acontecerem as pessoas têm que estar dispostas a treinar com esforço de forma consistente, um fenómeno bastante raro na nossa sociedade moderada, já que a maioria está mais disposta a tomar uma pastilha milagrosa (e acreditar na fé) que em fazer algo por elas. Portanto, serão apenas os indíviduos focados e aqueles que entendem e aplicam estes princípios no treino (e na vida) que vão acabar por ter mais benefícios – não dependerá da sorte, certamente!
Até breve!
Pedro Correia
Referências
Melov S, Tarnopolsky MA, Beckman K, Felkey K, Hubbard A (2007) Resistance Exercise Reverses Aging in Human Skeletal Muscle. PLoSONE 2(5): e465. doi:10.1371/journal.pone.0000465
Se o seu avô / avó é uma pessoa normal, é muito provável que já tenha ido ao médico muitas vezes, que tome vários medicamentos, que não oiça muito bem e que já não tenha a mesma capacidade de locomoção e de raciocínio que tinha há alguns anos atrás.
Os médicos dizem que isto é “normal” e que é típico do avançar da idade, eles até receitam medicamentos com a crença que isso vai melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. Não digo que isso não seja necessário para alguns casos, mas também não acredito que isso seja a melhor abordagem para melhorar a saúde da maioria das pessoas que ainda respira na terceira idade.
Há mais de dois anos atrás saiu uma notícia no Público (link aqui), que dizia que as portuguesas viviam cada vez mais tempo, mas com menos saúde. A notícia dizia ainda: “as portuguesas têm uma esperança de vida que é das melhores do mundo, mas desfrutam de muito menos anos saudáveis do que as mulheres dos países melhor classificados na Europa.”
Ao ler a notícia, a primeira coisa que pensei foi: nós temos que ser mesmo muito estúpidos, porque mesmo com os avanços diários da medicina e do conhecimento científico, nós ainda não fomos capazes de perceber quais são as causas que estão por detrás desta longevidade DOENTE. O problema não está no avançar dos anos, o problema está nos conselhos de treta que ouvimos todos os dias sobre nutrição e exercício físico, especialmente nos hospitais. Se as campanhas de prevenção e os folhetos informativos que lá estão fossem realmente suportados pela evidência científica, provavelmente não haveriam tantas pessoas a padecer com dores crónicas, com diabetes, com doença cardíaca, com osteoporose, com sarcopenia, com doenças auto-imunes e com cancro.
Toda a gente sabe que o exercício físico é determinante para o funcionamento do nosso corpo (o nosso cérebro e corpo não se desenvolveu com o rabo sentado na secretária) e, que, ao contrário dos medicamentos, este tem um impacto positivo e auto-regulador nos vários sistemas do corpo humano. Fazer exercício físico é mais eficaz para a saúde que qualquer medicamento patenteado.
“Mas eu ando uma hora a pé todos os dias”
Repare numa coisa, andar a pé é o mínimo que pode fazer para manter o seu corpo a funcionar. Se você me diz que é isso ou ficar recostado no sofá a comer gelados, então é melhor andar a pé. Mas se você me diz que pretende viver uma vida saudável até morrer, ser mais independente, diminuir o risco de quedas, aumentar a auto-confiança, dormir melhor, recuperar mais rapidamente de uma lesão e não fazer parte das estatísticas que vimos acima, aquilo que recomendo é que comece a pensar seriamente a levantar pesos e a fazer treino de força. Andar a pé não lhe vai dar, nem por sombras, os mesmos benefícios do treino de força.
Outra coisa, se você é daquelas pessoas com doença cardiovascular, o seu médico (ou algum Dr. do Google) provavelmente disse-lhe que era importante andar a pé para melhorar a sua saúde cardiovascular. O problema é que isto não lhe vai ajudar muito, a falta de capacidade aeróbia não é um factor de risco para a doença cardíaca, o sedentarismo é que é! – isto significa que você pode ter uma capacidade aeróbia fora do vulgar e uma doença de coração na mesma. Na verdade, de acordo com este estudo publicado em 2006 no jornal da American Heart Association (LINK), com este publicado em 2008 no European Heart Journal (LINK) e com este publicado em 2012 na Mayo Clinic Proceedings (LINK), os maratonistas são aqueles que parecem ter maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares.
Mais, de acordo com o cardiologista Henry A. Solomon no livro The Exercise Myth, a saúde cardiovascular refere-se à ausência de doença do coração e dos vasos sanguíneos, e não à capacidade de um indivíduo fazer uma certa quantidade de trabalho físico. Segundo o mesmo médico, a sua saúde geral cardíaca é determinada pela condição de várias estruturas do coração, incluindo o músculo cardíaco, as válvulas, os tecidos cardíacos especiais que transportam os impulsos eléctricos e as artérias coronárias. Ou seja, não espere que o exercício compense ou “limpe” aquilo que pratica na sua alimentação diária.
Esta mania que o cardio é que é bom surgiu no fim dos anos 60/início dos anos 70 por intermédio do Dr. Kenneth Cooper (o criador do teste de Cooper), foi a partir daqui que toda a gente começou a olhar para o VO2 máximo como o santo graal do condicionamento físico. Mas isto não é bem assim, você precisa de treinar de acordo com as suas necessidades e não de acordo com a conveniência da maioria dos ginásios, isto é, passar horas na passadeira / elíptica / bicicleta, percorrer todas as máquinas que lá estão e ignorar o treino com pesos.
Porquê o treino de força?
Porque a força / potência são as capacidades que mais perdemos ao longo da vida e porque vários estudos têm demonstrado que a perda de força e massa muscular estão associadas com um aumento da mortalidade (LINK, LINK, LINK). Felizmente, levantar pesos é o melhor estímulo para contrariar esta tendência e para aumentar a nossa capacidade funcional. Em condições normais, os picos de força acontecem entre os 20 e 30 anos, depois desta idade os índices de força mantêm-se relativamente estáveis ou diminuem ligeiramente durante os próximos 20 anos, se bem que tudo depende daquilo que fazemos no treino.
É na sexta década de vida que as diminuições na força são bastante acentuadas. De acordo com alguns estudos longitudinais, os declínios de força muscular andam à volta dos 15% entre os 60-70 anos de idade e de 30% após os 70 anos. As razões têm a ver principalmente com a perda de massa muscular, com a perda mais acentuada das fibras musculares de contração rápida, com a diminuição da função endócrina, com a perda de mobilidade / elasticidade dos tecidos e com a desidratação celular. Todas estas coisas podem ser minimizadas com um programa de treino adequado.
Sim, é possível começar treinar a força a qualquer idade, eu conheço pessoas que começaram a treinar com 50, 60 e com mais de 80 anos, é tudo uma questão de mentalidade e de força de vontade.
Quer isto dizer que eu devo meter os meus avós a levantar pesos e/ou barras olímpicas sem critério? Claro que não, isso não seria muito inteligente. Para chegar a esse ponto é preciso percorrer um caminho, é preciso avaliar a situação específica de cada pessoa, é preciso criar uma base de movimento sólida, e para isso o melhor que tem a fazer é consultar um profissional do exercício ou preparador físico que percebe de movimento e de treino de força.
Você até pode ouvir a opinião do seu médico (e até acho bem que o faça se fica mais seguro assim), mas lembre-se do seguinte: 1) o seu médico não é especialista em movimento; 2) o seu médico não tem experiência a treinar pessoas; 3) o seu médico, provavelmente, nem sabe levantar pesos. Ou seja, da mesma forma que você não iria pedir conselhos sobre técnicas de cirurgia a treinadores, você também não deveria pedir conselhos sobre metodologias de treino e formas de exercício físico a cirurgiões.
Ah e antes que me digam que eu estou a ser fundamentalista e a sugerir que não se treinem outras capacidades físicas (como a estabilidade, a mobilidade, a resistência, a velocidade, a agilidade, a coordenação motora, a potência), permitam-me terminar com a seguinte observação: o programa de treino de qualquer ser humano no planeta, em condições ideais, deverá ser sempre aquele que induza as adaptações necessárias para os objetivos pessoais.
A palavra chave aqui é adaptação, os mais adaptados estarão melhor preparados para enfrentar qualquer situação. Cada um é livre de fazer aquilo que quiser na sua vida, cada um de nós tem a capacidade de decidir o que fazer todos os dias, para mim o objetivo é aumentar a longevidade e viver até os últimos dias da minha vida a sentir-me forte e espetacular. Qual é o seu?
Até breve!
Pedro Correia
Referências
Möhlenkamp S, Lehmann N, Breuckmann F, Bröcker-Preuss M, Nassenstein K, Halle M, Budde T, Mann K, Barkhausen J, Heusch G, Jöckel KH, Erbel R; Marathon Study Investigators; Heinz Nixdorf Recall Study Investigators. Running: the risk of coronary events : Prevalence and prognostic relevance of coronary atherosclerosis in marathon runners. Eur Heart J. 2008 Aug;29(15):1903-10. doi: 10.1093/eurheartj/ehn163. Epub 2008 Apr 21.
Neilan TG, Januzzi JL, Lee-Lewandrowski E, Ton-Nu TT, Yoerger DM, Jassal DS, Lewandrowski KB, Siegel AJ, Marshall JE, Douglas PS, Lawlor D, Picard MH, Wood MJ. Myocardial injury and ventricular dysfunction related to training levels among nonelite participants in the Boston marathon. Circulation. 2006 Nov 28;114(22):2325-33. Epub 2006 Nov 13.
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